«O socialismo morreu. Falar dele é fazer a sua oração fúnebre». Esta frase, que podia ter sido publicada na Folha de São Paulo de hoje, foi escrita por um obscuro jornalista francês, Louis Reybaud, em 1854. O socialismo estava então morto no sentido literal da palavra. A repressão à insurreição dos operários de Paris de 23 a 26 de Junho de 1848 fizera de 4.000 a 15.000 cadáveres.
Neste sentido, o socialismo nunca deixou de estar em crise. Se a sua razão de ser é a instauração de uma nova organização social, em que deixe de haver exploração e, portanto, classes sociais e opressão política, o mero facto de o socialismo não triunfar constitui uma crise do socialismo.
A primeira grande crise resultou da derrota na vaga de revoluções que agitou a Europa de 1846 a 1848. Fracassaram então as tentativas do proletariado para se emancipar da burguesia radical.
A segunda crise resultou do esmagamento da Comuna de Paris de 1871. Fracassou a primeira tentativa do proletariado para instaurar uma sociedade socialista.
A terceira crise resultou da derrota e da desagregação do grande surto insurreccional dos soldados e dos trabalhadores das fábricas e dos campos na Europa de 1916 a 1921. Numa fase em que o capitalismo era já imperialista, o socialismo só podia ser internacional. Mas o movimento foi derrotado pelas armas na Hungria e na Alemanha, desagregou-se nos outros países e degenerou rapidamente na Rússia.
A quarta crise resultou da maneira como se operaram as independências dos povos colonizados, desde a segunda guerra mundial até à década de 1970. Ficou manifesta a incapacidade dos trabalhadores para converterem o processo de independência numa revolução social. Os trabalhadores serviram de base para a instauração de capitalismos autóctones.
A quinta crise resultou da desagregação e da recuperação dos movimentos de luta autónoma, que proliferaram e se desenvolveram desde o final da década de 1950 até aos primeiros anos da década de 1980 na Europa de Leste e na Europa ocidental, na América do Norte, na China e em países da América do Sul.
A autonomia de que os trabalhadores deram mostras na direcção das suas lutas e no controle exercido sobre muitas empresas ocupadas foi recuperada pelos capitalistas mediante a introdução de novos sistemas de administração e de organização dos processos produtivos.
A história do movimento socialista tem sido a história das crises do socialismo. A crise mais grave do socialismo é o facto de o capitalismo continuar a existir.
No entanto devem observar-se dois aspectos:
1) O movimento nunca foi retomado no ponto inicial. De crise para crise tem-se avançado para novos limiares, em que os trabalhadores visam mais alto. Não é um círculo vicioso, mas uma espiral ascendente. Isto deve-se ao facto de cada grande surto de luta dos trabalhadores obrigar os capitalistas a reorganizarem-se e a remodelarem o sistema de exploração. E é neste sistema renovado que os trabalhadores recomeçam o combate.
2) Mas todos nós temos a noção de que alguma coisa diferente se passou nos últimos anos e que a derrocada dos regimes de tipo soviético foi mais marcante ainda do que qualquer das fases anteriores. Com efeito, é possível apercebermo-nos de que o fim do bloco soviético marcou o epílogo de um ciclo de crise muito longo, que inclui todas as outras crises que acabei de enumerar.
Existem duas grandes tradições no socialismo, uma libertária e a outra paternalista e autoritária. Ambas datam do início do movimento e com frequência a demarcação entre elas não tem sido nítida. A obra de muitos socialistas pode ser interpretada como casos específicos de conjugação de uma e outra corrente.
A tradição paternalista e autoritária propõe as relações sociais existentes no quadro das empresas como modelo da sociedade futura. Pode fazê-lo explicitamente, quando enaltece a organização do trabalho e a disciplina de empresa, ou implicitamente, quando concentra todas as preocupações na tomada do aparelho de Estado central, admitindo portanto que a organização do trabalho não constitui um problema significativo.
Esta tradição paternalista e autoritária é responsável pela relutância que existe nos meios de esquerda em analisar as empresas enquanto aparelho de poder. Isto não impediu, porém, que a crítica prática dos trabalhadores ao sistema empresarial se manifestasse desde muito cedo.
Robert Owen, o primeiro dos socialistas ditos utópicos, fundou em 1825 a comunidade de New Harmony. A terra e as oficinas eram propriedade comum, a agricultura era colectiva e a remuneração era igual para todos. A experiência foi um insucesso, e nas condições económicas de então não podia deixar de o ser. Mas o importante é que se malogrou antes de se terem manifestado os impedimentos económicos mais gerais. A razão imediata do fracasso deveu-se à insatisfação dos pioneiros que participavam na comunidade perante a gestão autoritária de Owen. Em 1826 a comunidade cindiu-se em várias facções e a ruptura tornou-se definitiva em 1827.
Em New Harmony as relações jurídicas de propriedade haviam sido remodeladas, mediante a instauração da propriedade comum e o igualitarismo dos salários. Mas as relações sociais de produção permaneceram inalteradas, pois a gestão continuava a ser autoritária e, portanto, os trabalhadores continuavam despossuídos do controle do processo de trabalho. Os pioneiros que haviam acorrido ao apelo de Owen eram insatisfeitos sociais, experimentadores de formas novas, iluminados, e deparavam-se com quê? Com o autoritarismo inerente às relações de exploração. A coberto do Novo Mundo, era o velho mundo que lhes aparecia. Foi esta a razão interna do fracasso.
O mesmo sucedeu com as outras comunidades inspiradas por Owen, dezasseis nos Estados Unidos e sete na Grã-Bretanha. Em todas surgiu a discórdia entre, por um lado, os operários, que trabalhavam, e, por outro, os filantropos burgueses, que subsidiavam e geriam. Talvez fosse pelos mesmos motivos que a tentativa de Owen de se apoderar da incipiente organização sindical britânica e de aproveitá-la para a generalização dos mecanismos cooperativos de produção e de troca, que pareceu ter tanto êxito entre 1832 e 1834, redundou afinal num novo insucesso.
Robert Owen pretendeu transformar as relações de propriedade, mas deixou intactas as relações de produção, as relações de trabalho. A distinção entre relações de propriedade e relações de produção, que demorou tanto tempo e custou tantos esforços teóricos até começar a ser compreendida e formulada no quadro do marxismo heterodoxo, presidira já, na prática, aos antagonismos sociais que rasgaram por dentro as comunidades fundadas por Owen e pelos seus discípulos. Sob este ponto de vista, a fase iniciada em 1826 com a desagregação de New Harmony só se encerrou na última década do século XX, com a extinção do comunismo soviético.
Se esta perspectiva de síntese estiver correcta, concluímos que ao longo de cento e setenta anos se generalizou na classe trabalhadora a experiência da distinção entre as relações jurídicas de propriedade e as relações sociais de trabalho. Esta distinção foi primeiro feita em 1825, logo no início do movimento operário, pela própria prática de um grupo de trabalhadores mais activos. No entanto, passaram muitas décadas até que aquela distinção fosse formulada teoricamente. Em 1900, no exílio siberiano, [Jan Wacław] Makhaïsky foi o primeiro autor a pensar de maneira sistemática a distinção entre relações de propriedade e relações sociais de produção, e a reflectir sobre as implicações desta distinção segundo um ponto de vista revolucionário. A revolução russa de 1917 representou, no quadro marxista, o choque entre o partido bolchevista, que remodelou apenas as relações políticas e jurídicas, e um movimento de massas trabalhadoras, que pretendia levar a reestruturação às próprias relações sociais de trabalho.
O mesmo choque se observou, no interior do anarco-sindicalismo, durante a guerra civil de Espanha, entre 1936 e 1939. Mas o triunfo do fascismo em Espanha dificultou a compreensão desta experiência, ou pelo menos a sua difusão.
A União Soviética, e depois os outros países do seu bloco, elucidaram os resultados práticos do conflito entre a mera reforma das relações de propriedade e as tentativas de revolucionar as relações de trabalho. A crítica prática dirigida pelos trabalhadores contra o modelo soviético de socialismo foi demonstrada em inúmeras ocasiões, desde o próprio começo da guerra civil na Rússia, em 1918, até ao colossal movimento do sindicato Solidariedade, na Polónia, em 1980 e 1981. Nesta vaga de lutas a crítica teórica revelou um atraso menor do que aquele que a havia caracterizado no século XIX, e durante as décadas de 1920 e 1930, como de novo nas décadas de 1960 e 1970, floresceram as oposições de esquerda ao comunismo de tipo soviético.
É curioso ver que muitos intelectuais e militantes políticos só recentemente acordaram para o fracasso daquilo a que ainda há poucos anos chamavam «socialismo real». O que os preocupa não é o facto de os regimes de tipo soviético não terem aberto oportunidades para a remodelação das relações de trabalho. Só lamentam o facto de aqueles regimes terem deixado de servir de modelo para a tomada do poder político, devido às transformações entretanto operadas no capitalismo. E tanto assim que essas pessoas procuram fazer esquecer que a crítica prática e teórica do comunismo soviético vinha a ser feita desde 1918. As repetidas lutas da classe trabalhadora contra os regimes de tipo soviético não são hoje referidas nem analisadas na grande imprensa e na obra dos intelectuais em voga, e os autores que as relataram ou analisaram não são traduzidos nem editados, ou reeditados.
Mas as angústias dos intelectuais e políticos que só deram conta do fracasso do «socialismo real» depois de toda a gente o ter entendido não fazem parte da crise do socialismo. Fazem parte da crise do reformismo. A social-democracia reformista perdeu o seu programa próprio e tem hoje de converter-se apressadamente ao neoliberalismo.
E isto deve deixar-nos optimistas. Já não é mau, para encetar um novo ciclo do movimento anticapitalista, que o reformismo esteja hoje numa situação tão melindrosa.
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Fonte: Notas para uma palestra realizada no Espaço Cultural Helena Greco, do Sindicato dos Bancários de Belo Horizonte e Contagem, Brasil, em 12 de Julho de 1995. [As fotos e legendas foram acrescentadas ao texto original pelo administrador deste blogue, J.C.S]. A imagem de destaque é uma foto tirada por Paola Breizh, em Maio de 2021, no 20.º arrondissement de Paris, de um cartaz de parede com uma frase do poeta René Char: «L’essentiel est sans cesse menacé par l’insignifiant» [O essencial está incessantemente ameaçado pelo insignificante].
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[*] João Bernardo Maia Viegas Soares, mais conhecido por João Bernardo, nome próprio com que assina a sua obra escrita, é um militante político, investigador e ensaísta português. No campo da investigação, tem-se dedicado, principalmente, a três grandes temas: (i) a crítica do capitalismo e das ilusões e extravios do movimento proletário, (ii) o desenvolvimento do regime senhorial da Idade Média, (iii) a estética e a arte. No tema (i), incluem-se subtemas como o fascismo e os seus desenvolvimentos contemporâneos; o desenvolvimento do capitalismo, com especial enfâse nos métodos mais avançados de organização do trabalho e de exploração dos trabalhadores; os conflitos sociais; a teoria do Estado; o sindicalismo e a história do movimento proletário; o ecologismo, o racismo e o identitarismo. É autor, entre outros, dos livros O inimigo oculto. Ensaio sobre a luta de classes. Manifesto antiecológico. Porto: Afrontamento, 1979); Economia dos Conflitos Sociais (1ª ed. São Paulo/Porto: Cortez/ Afrontamento, 1991; 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2009; 3ª ed. Lisboa: Edição do Autor, 2015); Poder e Dinheiro: do Poder Pessoal ao Estado Impessoal no Regime Senhorial, Séculos V-XV (Porto: Afrontamento, 3 vols.: 1995, 1997, 2002); Estado: a Silenciosa Multiplicação do Poder (São Paulo: Cortez, 1998); Transnacionalização do Capital e Fragmentação dos Trabalhadores: Ainda Há Lugar Para os Sindicatos? (São Paulo: Boitempo, 2000); Labirintos do Fascismo: Na Encruzilhada da Ordem e da Revolta (a sua tese de doutoramento na Universidade Estadual de Campinas em 1998; Porto: Afrontamento, 2003; 2ª ed. Lisboa: Edição do Autor, 2015); em co-autoria com Luciano Pereira Capitalismo Sindical (São Paulo: Xamã, 2008); A Sociedade Burguesa de Um e Outro Lado do Espelho/Os Sentidos das Palavras (Lisboa: Edição do autor, 2013) ; Arte e Espelho (Passa Palavra, 2021).