Sítio com Vista conta, a partir de agora (Setembro de 2020) com quatro textos muito elucidativos sobre o projecto Cybersyn — de Paul Cockshott & Allin Cottrell, Raúl Espejo, Katharina Loeber, e Jeremy Gross, respectivamente. São textos que dispensam apresentações. O pequeno texto que se segue foi escrito com o único propósito de motivar a sua leitura por aqueles leitores de língua portuguesa (e suspeito que sejam muitos) que nunca ouviram falar do projecto Cybersyn nem de Stafford Beer, o seu conceptor.
****
Corria o mês de Novembro de 1971, um ano após a eleição de Salvador Allende, do Partido Socialista Chileno, como presidente da República do Chile e da formação do seu governo apelidado de Unidade Popular.
O ciberneticista inglês Stafford Beer, então com 41 anos, chega a Santiago de Chile, depois de ter aceitado o convite que lhe fora feito pelo governo chileno para uma missão singular e na verdade inédita nos anais da humanidade. Cabe-lhe gizar um plano de acção que permita coordenar 260 empresas nacionalizadas pelo governo através de um sistema computadorizado de informação, comunicação e regulação cibernética em tempo real, de modo a cumprirem eficientemente objectivos de política social em prol da população e, ao mesmo tempo, funcionarem autónoma e democraticamente sob o controle de gestão dos seus trabalhadores.
Assim nasceu o projecto apelidado de Cybersyn (o seu nome inglês) ou Sinco (o seu nome espanhol). O primeiro nome é uma amálgama lexical das palavras cybernetics [cibernética] e synergy [sinergia]. O segundo nome é um acrónimo de Sistema de Información y Control e um trocadilho com o numeral cinco, aludindo aos cinco níveis do “Modelo de Sistema Viável” (Viable System Model ou VSM na sigla inglesa) de Stafford Beer. Foi uma aventura intelectual, social e política extraordinária a todos os títulos, enquanto durou. Foi interrompida e destruída pelo sangrento golpe de Estado militar do general Pinochet, Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas do Chile, no dia 11 de Setembro de 1973, com o apoio directo do governo dos EUA [ver nota 1].
O presidente Allende, os seus colaboradores mais directos e a sua guarda pessoal opuseram resistência armada ao golpe no palácio de La Moneda, a residência oficial do presidente da República. Depois de fazer um discurso final na rádio afirmando que não se demitiria nem se renderia aos seus verdugos, e reiterando a sua convicção de que o seu sacrifício não seria em vão, Allende suicidou-se com dois tiros da sua espingarda de assalto AK-47. No dia do golpe e nas 3 semanas seguintes, 40.000 pessoas foram presas pelos militares de Pinochet e levadas para o estádio nacional em Santiago de Chile, onde várias centenas foram fuziladas. Durante os 17 anos que durou o regime de Pinochet, foram assassinadas 3.216 pessoas pelos militares e pela polícia do regime, em muitos casos sem que se conheça onde param ou onde foram destruídos os seus restos mortais (Comision Retti, 1996). 38.254 pessoas foram presas durante o mesmo período, 94% das quais foram torturadas (Comision Valech, 2004).
Stafford Beer passou o ano de 1974 a tentar ajudar os seus amigos e colegas chilenos do projecto Cybersyn, alguns dos quais se exilaram e tiveram de refazer as suas vidas no estrangeiro. Em 1975, profundamente afectado pelos trágicos acontecimentos de 1973 no Chile, Beer abandonou a sua vida de consultor e professor de renome internacional, renunciou aos seus bens materiais e passou a viver, quase como um eremita, em Cwarel Isaf, uma pequena casa de campo (Ing. cottage) no País de Gales. A partir de 1985, Beer começou a passar metade do ano em Cwarel Isaf e a outra metade em Toronto (Canadá), onde a sua segunda mulher trabalhava e onde o seu trabalho era especialmente apreciado.
Assim viveu durante os seus últimos 30 anos, dedicado aos seus estudos de cibernética, à poesia e à pintura. Publicou durante este período alguns dos seus livros mais conhecidos sobre Cibernética (The Brain of the Firm [2ª edição, de 1985, muito alargada pela inserção da análise do projecto Cybersyn], Diagnosing the System for Organisations, Platform for Change, Beyond Dispute: the Invention of Team Syntegrity). Publicou também livros de poemas [Transit] durante o mesmo período e a sua pintura foi exposta várias vezes, nomeadamente numa abside da catedral católica de Liverpool, em 1992 e 1993. Para explicar esta profunda transformação nada melhor do que recorrer às suas próprias palavras.
A carnificina e as confusões do ano seguinte [ao golpe de Estado de Pinochet em 11 de Setembro de 1973] foram vividas por mim como uma tragédia pessoal. Gastei esse tempo a repensar a minha própria vida, uma vez mais. As mudanças em que eu tinha embarcado não eram suficientes.
********
A ideia de que eu tinha sido programado para “ser bem sucedido” tinha-se tornado dominante [na minha vida]. Em diferentes ocasiões, eu tinha vivido em três casas grandes, tinha uma piscina e uma variedade de automóveis feitos para dar nas vistas. Eu não queria nenhuma dessas coisas; elas atravancavam o meu caminho. Todavia, eu não era rico —as minhas ideias políticas tinham-me impedido de comprar acções lucrativas. Por um acordo feito com a minha família, eu ia passar a viver dali em diante da maneira que eu entendia ser a melhor; e renunciei aos meus bens materiais em favor da minha família. O problema remanescente, que significava que eu não poderia fazer uma mudança total, era a necessidade de manter ambas as famílias [Beer foi casado duas vezes e teve 5 filhos e 3 filhas].
O plano consistia em adoptar um estilo de vida congruente com a riqueza nacional [ironia de Beer, bem entendido]. Comprei uma casa de campo, feita de pedra, nas colinas de Ceredigian. É muito pequena e não tem água canalizada, mas é robusta. Eu próprio construí a mobília, salvo uma roda de fiar, porque eu queria fiar lã. Para transporte, adquiri um velho Land-Rover, que tem agora 29 anos. Tudo isto foi feito a tempo de poder passar o meu 50º aniversário dessa maneira (Excerto do Prefácio a «I Said You Are Gods», palestra feita na “Second Annual Teilhard Lecture”, em 2 de Dezembro de 1980, e publicada em 1981 pelo Teilhard Centre for the Future of Man).[minha tradução]
Nota
[1] O golpe de Estado de Pinochet foi levado a cabo por instigação e com o apoio directo do governo americano ao mais alto nível : o presidente Richard Nixon e o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Henry Kissinger.
O apoio directo para derrubar o governo de Allende recebeu o nome de código de projecto Fubelt (também conhecido por Track 2) e foi executado pelos serviços secretos civis dos EUA (Central Intelligence Agency, vulgo CIA) e pelos serviços secretos militares (Defense Intelligence Agency, vulgo DIA), que utilizaram para o efeito uma larga panóplia de armas: dinheiro, agitprop, desinformação, encobrimentos, embargo de exportações, boicotes, assassinatos selectivos — como o do general René Schneider, leal a Allende —, mísseis. Sabemos tudo isso graças ao Relatório Church do Senado americano de 1975, e a mais de 24.000 documentos desclassificados ao abrigo do Freedom of Information Act entre Junho de 1999 e Junho de 2000. A este propósito, ver, por exemplo, o livro de Peter Kornbluh, The Pinochet File: A Declassified Dossier on Atrocity and Accountability. A National Security Archive Book. The New Press. 2003. Para uma palestra do mesmo autor sobre o mesmo assunto, ver The U.S. and the Overthrow of the Chilean Government: A Declassified Dossier (2003) no You Tube. A hiperligação é: https://www.youtube.com/watch?reload=9&v=jCNxYVCMzoM)
………………………………………………………………………………..……………………………………………….
[*] José Catarino Soares é o administrador deste blogue.