Há muitas perguntas relevantes para a sobrevivência e a melhoria das condições de vida da humanidade no nosso planeta para as quais vale a pena procurar, com afinco, uma resposta. Neste blogue só nos ocuparemos de duas delas, não porque as outras perguntas não sejam relevantes, mas porque essas duas (que formularei muito mais abaixo) são as mais negligenciadas de todas, apesar da sua imensa importância.
De resto, sabemos já a resposta a muitas das outras perguntas. Algumas delas baseiam-se em informações não só disponíveis publicamente, mas também acessíveis na W3 (WWW). Outras estão disponíveis graças ao trabalho aturado e rigoroso de um pequeno mas incansável número de investigadores. Eis uma lista exemplificativa:
— Sabemos qual é, e como funciona, o modo de produção de bens e serviços que reina, supremo, em todo o planeta: é o modo capitalista de produção1.
— Sabemos também quais são as condições actuais de produção e de troca desse ubíquo modo de produção e como está estruturada a rede de instituições financeiras, políticas, militares, policiais, conviviais e comunicacionais ao seu serviço.
Os donos do planeta
— Sabemos, por exemplo, quantas são e quais são as firmas capitalistas transnacionais que controlam o grosso da indústria, da agricultura, dos serviços e do comércio à escala mundial. Sabemos que são cerca de 43.000 firmas com intervenção em 113 países2.
— Sabemos que 1.389 dessas 43.000 firmas transnacionais (FTN, para abreviar) formam o núcleo central da economia global. Isto, porque estas 1.389 FNT, embora representem 20% das receitas operacionais globais do seu grupo, possuem colectivamente, através das acções que controlam, as maiores firmas “ficha azul”3 e as maiores firmas das indústrias transformadoras (a chamada “economia real”), as quais representam 60% das receitas globais.
— Sabemos que cada uma dessas 1.389 FTN tem ligações a duas ou mais outras firmas. Em média, cada FTN deste núcleo central tem 20 ligações com outras firmas. O gráfico 1 representa as interconexões entre essas 1.389 FTN. As firmas superconectadas são representadas pelos botões vermelhos, as firmas muito conectadas pelos botões amarelos. O tamanho do botão representa a receita maior ou menor da firma em causa.
— Sabemos também que estas 1.389 firmas transnacionais são dominadas, por sua vez, por um núcleo mais restrito de 147 firmas transnacionais ainda mais interconectadas e mais poderosas. Estas 147 firmas transnacionais formam uma espécie de “superentidade”, visto que oferecem a particularidade da estrutura accionista de cada uma delas ser controlada total ou parcialmente pelos outros membros deste grupo restrito. Esta “superentidade” representa menos de 0,5% das 43.000 firmas transnacionais mais interconectadas. No entanto, é ela que controla cerca de 40% da riqueza mundial gerada neste conjunto graças à altíssima densidade das suas interconexões financeiras. O gráfico 2 é um exemplo parcial (porque diz respeito apenas a 18 dessas 147 FTN), mas muito expressivo, dessas interconexões4.
— Sabemos também quantas são e quais são, entre essas 147 firmas transnacionais, as maiores de todas, que dominam e se sobrepõem a todas as outras. Se nos referirmos ao país onde têm a sua sede (casa-mãe, administração central, matriz) e ao montante em dólares americanos ($) dos activos que gerem, a sua lista, por ordem de grandeza, era a seguinte, em 20175:
- Black Rock (EUA): 5,4 biliões $
- Vanguard Group (EUA): 4,4 biliões $
- P. Morgan Chase Bank (EUA): 3, 8 biliões $
- Allianz SE [PIMCO] (Alemanha/EUA): 3,3 biliões $
- UBS (Suíça): 2,8 biliões $
- Bank of America Merry Linch (EUA): 2,5 biliões $
- Barclays plc (Reino Unido): 2,5 biliões $
- State Street Global Advisors (EUA): 2,4 biliões $
- Fidelity Investments [FMR] (EUA): 2,1 biliões $
- Bank of New York Mellon (EUA): 1,7 bilião $
- AXA Group (França): 1,5 bilião $
- Capital Group (EUA): 1,4 bilião $
- Goldman Sachs Group (EUA):1,4 bilião $
- Crédit Suisse (Suíça): 1,3 bilião $
- Prudential Financial (EUA): 1,3 bilião $
- Morgan, Stanley & Co (EUA): 1,3 bilião $
- Amundi/Crédit Agricole (França): 1,1 bilião $
Estas 17 firmas, bancos e firmas financeiras, controlam um total de 41,1 biliões de dólares americanos (estimativa que peca por defeito) ou, equivalentemente, 37,4 biliões de euros6. Como se pode ver pela lista, cada uma destas firmas possui mais de 1 bilião de dólares em carteira, 5 possuem mais de 2 biliões, 3 mais de 3 biliões, e uma chega a atingir 5,4 biliões.
Estas 17 firmas são os gigantes financeiros do capitalismo mundial. Recentemente, mais três firmas financeiras transnacionais adquiriram também o estatuto de “gigantes” por controlarem uma carteira de investimentos superior a 1 bilião de dólares americanos. Os novos gigantes são o BNP Paribas de França (com 1,2 biliões $ sob controlo), o Northerm Trust de Chicago, EUA (com 1,1 bilião $) e a Wellington Management Company de Boston, EUA (com 1bilião $). Tal como os seus congéneres da lista supra-referida, também estes novos gigantes estão interconectados entre si e com os outros gigantes7.
Os capitais sob o controlo destas firmas vêm nominalmente de muitos milhares de multimilionários, de muitas dezenas de milhares de firmas não financeiras (industriais, comerciais, agrícolas, de serviços) e de muitos fundos de pensões que delegam nestas gigantescas firmas de gestão de investimentos a tarefa de investirem o seu dinheiro no mercado com a expectativa de conseguirem obter em retorno uma taxa de lucro bem acima da média para o seu capital — ou seja, de 3 a 10%.
— Sabemos que um grupo muito pequeno, de apenas 737 accionistas (0,61% dos accionistas), concentra nas suas mãos o controlo de 80% de todas as firmas transnacionais no mundo. A desigualdade no controlo entre as firmas é 10 vezes maior do que a desigualdade na distribuição da riqueza no mundo, a qual já é em si brutal 8. Mais ainda, sabemos que 50 accionistas (muitos deles são firmas financeiras) controlam 39,78% de todas as FTN. Ou seja, 80% das FTN são controladas por 737 accionistas, mas metade delas, 40%, são controladas por apenas 50 accionistas.
— Sabemos qual é a forma canónica como o capital é personificado e qual é a estrutura da sua estratificação. Mais concretamente, sabemos que o capital, na sua forma canónica (aquela que vigora nos países industrial e tecnologicamente mais desenvolvidos), é personificado por gente de uma classe social composta por várias camadas e que as camadas superiores (adiante designadas, abreviadamente, por letras maiúsculas), as mais endinheiradas e as mais poderosas, estão interconectadas de muitas maneiras:
(A) os donos das firmas (bancos inclusive) que possuem e controlam as maiores empresas — ou seja, os grandes accionistas individuais, pessoas de carne e osso, que são donos das firmas que possuem e controlam as instituições onde se combinam, de forma organizada, os meios sociais de produção ou de troca e a força de trabalho humano necessária para os afeiçoar, produzir e fazer funcionar adequadamente;
(B) os gestores empresariais (directores executivos, administradores, consultores, auditores) em quem os donos das firmas delegam amiúde a tarefa de as gerirem no dia-a-dia e de as fazerem crescer;
(C) os facilitadores que planeiam, formulam, aprovam, executam ou mandam executar as leis e políticas públicas necessárias à promoção dos interesses das duas camadas anteriores;
(D) os justificadores, doutrinadores e propagandistas que fazem a publicidade das mercadorias e a apologia das alegadas virtudes e benesses do sistema capitalista mundial por meio da elaboração e defesa de doutrinas pseudocientíficas (como, por exemplo, o darwinismo social, a teoria económica do valor subjectivo, a sociobiologia, a psicologia evolucionista, a genoeconomia, a teoria crítica da raça, a política identitária, o capitalismo desperto [“woke”]) e de um uso judicioso da panóplia de técnicas desenvolvida pela “engenharia do consentimento”9 (propaganda, relações públicas, publicidade enganosa, dissimulação dos factos, distorção da verdade, notícias forjadas, desinformação, difamação, etc.);
(E) os protectores das quatro camadas anteriores, que se encarregam de garantir a sua segurança colectiva recorrendo, sempre que necessário e possível, à ultima ratio: a ameaça do uso e o uso efectivo da violência armada, seja pelo Estado ‒ entenda-se, pelas instituições especiais de coerção, coacção, repressão e destruição que são detentoras do monopólio legal da guarda e do uso das armas de guerra (forças policiais e militares) no âmbito nacional, e também directamente (EUA, Reino Unido, França, China, ex-União Soviética) ou por intermédio de alianças militares como a OTAN, no âmbito internacional ‒ seja, quando o Estado se mostra demasiadamente cauteloso ou relutante, pelas firmas de segurança privada e pelas companhias paramilitares privadas (vulgo, companhias de mercenários) como, por exemplo, a Academi (ex-Blackwater) nos EUA e a Wagner [durante a era Prigogine] na Rússia;
— Sabemos quantos são e quem são os indivíduos que constituem a “elite” plutocrática da camada (A), o grupo dos capitalistas propriamente ditos. Basta-nos consultar as páginas da revista Forbes para sabermos os nomes dos 2.057 capitalistas mais ricos do mundo. Sabemos qual é o montante aproximado das suas fortunas individuais, sempre superior a mil milhões de dólares americanos, porque só os detentores de fortunas dessa ordem de grandeza (aqui designados por “multimilionários”) é que têm lugar nessa lista10. A lista dos 30 capitalistas mais ricos do mundo em 2018 é a seguinte (mM = mil milhões; $= dólares americanos):
Nome Fortuna Idade Fonte País
1º Jeff Bezos $131 mM 55 Amazon EUA
2º Bill Gates $96,5 mM 63 Microsoft EUA
3º Warren Buffett $82,5 mM 88 Berkshire Hathaway EUA
4º Bernard Arnault $76 mM 70 LVMH França
5º Carlos Slim Helu $64 mM 79 Telecom México
6º Amancio Ortega $62,7 mM 83 Zara Espanha
7º Larry Ellison $62,5 mM 74 informática EUA
8º Mark Zuckerberg $62,3 mM 34 Facebook EUA
9º Michael Bloomberg $55,5 mM 77 Bloomberg LP EUA
10º Larry Page $50,8 mM 46 Google EUA
11º Charles Koch $50,5 mM 83 Koch Industries EUA
11º David Koch $50,5 mM 78 Koch Industries EUA
13º Mukesh Ambani $50 mM 61 petróleo e gás Índia
14º Sergey Brin $49,8 mM 45 Google EUA
15º F. Bettencourt Meyers $49,3 mM 65 L’Oréal França
16º Jim Walton $44,6 mM 70 Walmart EUA
17º Alice Walton $44,4 mM 69 Walmart EUA
18º Rob Walton $44,3 mM 74 Walmart EUA
19º Steve Ballmer $41,2 mM 63 Microsoft EUA
20º Ma Huateng $38,8 mM 47 internet EUA
21º Jack Ma $37,3 mM 54 cibercomércio EUA
22º Hui Ka Yan $36,2 mM 60 imobiliário EUA
23º B. Heister & K. Albrecht Jr. $36,1 mM ? supermercados Alemanha
24º Sheldon Adelson $35,1 mM 85 casinos EUA
25º Michael Dell $34.3 mM 54 Dell computers EUA
26º Phil Knight $33,4 mM 81 Nike EUA
27º David Thomson $32,5 mM 61 comunicação social Canadá
28º Li Ka-shing $31,7 mM 90 diversos Hong Kong
29º Lee Shau Kee $30,1 mM 91 imobiliário Hong Kong
30º François Pinault $29,7 mM 82 bens de luxo França
— Sabemos quantos são e quem são os indivíduos que constituem núcleo central da “elite” tecnocrática da camada (B), o grupo dos que gerem as firmas transnacionais gigantes. São apenas 197 indivíduos, na sua maioria do sexo masculino e americanos (logo seguidos por subgrupos menores de britânicos, franceses, alemães e suíços), que possuem diplomas universitários muito semelhantes (maioritariamente MBA’s em gestão), que são membros das mesmas organizações nacionais e transnacionais (como a US Business Roundtable, o Council on Foreign Relations, a Comissão Trilateral, o Grupo de Bilderberg), que vão às mesmas reuniões (como o Fórum Económico Mundial de Davos, as International Monetary Conferences) e que se conhecem todos uns aos outros.
Em torno deste núcleo central da camada (B), gravitam firmas transnacionais de consultoria empresarial, como as chamadas três grandes (Big Three) ‒ a McKinsey & Company (sem sede, presente em 133 cidades de 66 países, com 30.000 empregados), a Boston Consulting Group (com sede em Boston, escritórios em 90 cidades de 50 países, com 21.000 empregados) e a Bain & Company (com sede em Boston, escritórios em 59 cidades de 37 países, com 10.500 empregados) ‒, redes profissionais transnacionais de auditoria, consultoria de investimentos de risco, planeamento fiscal, seguros e disputas legais, como as chamadas quatro grandes (Big Four) ‒ a PricewaterhouseCoopers (com sede em Londres, escritórios em 157 países e 276.000 empregados), a Deloitte (com sede em Londres, escritórios em 150 países e 330.000 empregados), a Ernst & Young (com sede em Londres, escritórios em 150 países e 298.965 empregados), e a KPMG (com sede em Amstelveen, Holanda, escritórios em 147 países e 219.000 empregados) ‒ e firmas transnacionais de meios tecnológicos, investigação, dados, serviços de comercialização e eventos, tais como a International Data Group, Inc. (IDG) (com sede em Needham, Massachusetts, escritórios em 147 países e 3000 empregados), que foi recentemente adquirida pela Blackstone Inc., uma empresa transnacional americana de gestão de investimentos alternativos com sede na cidade de Nova Iorque.
- Poderíamos prosseguir este exame no que diz respeito às outras camadas ‒ (C), (D) e (E) ‒ que constituem a estratificação ou segmentação da classe capitalista global e chegaríamos a resultados semelhantes11.
— Por exemplo, sabemos quais são e como actuam as principais instituições transnacionais, quer interestatais quer privadas, da camada C, algumas das quais [assinaladas a azul] são praticamente desconhecidas do grande público consumidor de radiotelevisão e radiodifusão, e outras, como as agências de notação financeira, eram praticamente desconhecidas do grande público até à eclosão da crise de 2008 e das subsequentes políticas ditas de “austeridade,” quando se tornaram tristemente famosas pelo funesto papel que desempenharam tanto naquela como nestas. 12
# São a International Monetary Conferences (a mais antiga de todas), o Fundo Monetário Internacional (FMI), a Comissão Europeia, o Banco Mundial [o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) + Associação Internacional de Desenvolvimento (AID)], o G7, a Organização Mundial do Comércio, o Banco de Pagamentos Internacionais (em Inglês, Bank for International Settlements [BIS]) ‒ e os seus numerosos comités especializados, como, por exemplo, o Committee on the Global Financial System ‒, a Agência Multilateral de Garantia dos Investimentos [um dos cinco membros do grupo do Banco Mundial], o Conselho de Estabilidade Financeira (em Inglês, Financial Stability Board), o Banco Central Europeu, o Banco Europeu para a Reconstrução e o Desenvolvimento (em Inglês, European Bank for Reconstruction and Development), o Systemic Risk Council, a European Round Table of Industrialists, etc.
Num outro plano, mais mediático, pertencem também à camada C as agências de notação financeira (Ingl. credit rating agencies) para efeitos de classificação do risco inerente aos investimentos capitalistas, como a Standard & Poor’s (sediada em Nova Iorque, com escritórios em 28 países e mais de 10.000 trabalhadores), a Moody’s (sediada em Nova Iorque, com escritórios em 44 países e 13.200 trabalhadores), e a Fitch Group (sediada em Nova Iorque e Londres, com escritórios em 33 países e 4.500 trabalhadores), conhecidas como as “três grandes” porque controlam cerca de 95% do mercado das notações financeiras.
— Sabemos quais são e como actuam (X) as principais firmas transnacionais de Publicidade Global Virtual (PGV) e de Relações Públicas e Propaganda (RPP) e (Y) as principais firmas transnacionais de comunicação social (incluindo as agências noticiosas globais) e de comunicação social e entretimento em que operam os justificadores e propagandistas da camada (D).
# São, na subcategoria X, firmas de PGV como a Google, a Facebook, a Microsoft e a Yahoo; agências globais de RPP como o National Endowment for Democracy, e conglomerados de RPP como, por exemplo, o WWP Group (um conglomerado de 125 firmas de RPP em 112 países, com 190.000 empregados e uma receita de 21,1 mM $), o Omnicom Group (um conglomerado de firmas de RPP, com 74.000 empregados em 200 agências, com uma receita de 15, 2 mM $), e o Interpublic Group (com 49.700 empregados em 88 agências, com uma receita de 7.9 mM $).
# São, na subcategoria Y, agências noticiosas globais como, por exemplo, a Associated Press, a Reuters, a Agence France Press, a Deutsche Press-Agentur; firmas de comunicação social e de entretimento como, por exemplo, a Comcast Corporation (que controla redes de televisão, como a NBC e a Telemundo, produtoras de cinema e vídeo, como a Universal Pictures, e serviços de internet, com uma receita de 80,4 mM $), a Time Warner (que opera em 150 países, emprega 25.000 pessoas, controla a HBO, a Warner Bros, a Turner Broadcasting, a Cinemax, e tem uma receita de 28,1 mM $) e a 21th Century Fox (que controla a 21th Century Fox Films, as estações de televisão Fox Broadcasting Company e Star TV, a revista e rede de televisão National Geographic, e tem uma receita de 27,2 mM $) cujo accionista principal, Rupert Murdoch, é também dono de 800 outras firmas em 50 países13.
— Sabemos quais são e como actuam as principais organizações transnacionais que se encarregam da protecção e da segurança colectiva das instituições do capitalismo global.
# São instituições militares estatais e interestatais com sede nos países mais poderosos ou sob o seu comando, como, por exemplo, o Departamento de Defesa dos EUA (também conhecido por Pentágono), a Defense Advanced Research Projects Agency (DARPA), um braço do Pentágono, o US Special Operations Command (SOCOM), a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) ou NATO (o seu acrónimo em Inglês), etc.
# São agências estatais de espionagem, colecta sigilosa de informações, vigilância furtiva, interceptação, infiltração e destruição de “alvos”, como, por exemplo, a CIA, a DIA, a NSA, a NRO, a NGA nos EUA; o MI6, o MI5 no Reino Unido; a DPSD, a DGSE na França, etc.
# São as grandes firmas que controlam a produção de armas e outro material de guerra, como, por exemplo, a Lockheed Martin Corporation, a Boeing Company, a Raytheon, a Northern Grumman Corporation, a General Dynamics Corporation, nos EUA; a Thales, a Safran, a CEA, a Dassault, a Daher, a Nexter na França; a British Aerospace Electronics (BAE) Systems, a Rolls-Royce, a Babcock International Group, a GKN, a Serco, a Meggitt no Reino Unido; a Rhein-Metall, a ThyssenKrupp, a Krauss-Maffei Wegmann na Alemanha; a Leonardo/Finnmecanica, a Fincatieri na Itália; a Airbus e a MBDA no Reino Unido e na França; a Mitsubishi Heavy Industries, a Kawasaki Heavy Industries, a Fujitsu, a IHI Corp., a NEC Corp., no Japão, etc.
# São as grandes firmas de segurança privada (como a G4S, a Securitas AB, a ADT, a AlliedBarton, a DynCorp, a Gardaworld, etc.), sucessoras e émulas da Pinkerton National Detective Agency (1850) ‒ hoje uma subsidiária da Securitas AB ‒ e as companhias privadas de mercenários paramilitares (como a Academi [ex-Blackwater], a FDG Corp., a MRPI, a Aegis Defence Services, a Erynis International, a Wagner [durante a época de Prigogine], etc.).
— Sabemos que a soma dos indivíduos da camada (C) e da camada (D) que formam a “elite” dos facilitadores e dos justificadores/doutrinadores/propagandistas da classe capitalista transnacional à escala global não excede as quatro centenas de indivíduos14. Estes indivíduos, juntamente com os da “elite” tecnocrática dos gestores (camada B) ‒ ou seja, cerca de 600 indivíduos ao todo ‒ são uma parte importante da chamada “superclasse”, as 6.600 ou 7.000 pessoas (incluindo os 2.057 multimilionários da lista da Forbes) que constituem a cúpula da classe capitalista transnacional 15.
A riqueza acumulada por esta “superclasse” é imensa. Segundo a Oxfam, em 2019, os maiores multimilionários do mundo inteiro, apenas 2.153 pessoas, têm mais riqueza do que 4.500 milhões de pessoas, bem mais de metade da população mundial 16.
O poder e a influência desta “superclasse” ultrapassam os de quaisquer governos. Basta termos em mente que só os 2.057 multimilionários mais ricos do mundo que constam da lista da Forbes possuem, em conjunto, a fabulosa fortuna de 8.700 biliões de dólares americanos. As decisões de investimento desta “superclasse”, os capitais que movimentam, os lucros que auferem, as instituições que controlam, as influências que movem, afectam os empregos, os rendimentos, as condições de habitação, os cuidados de saúde, a escolaridade, a segurança social, os lazeres e os divertimentos de centenas de milhões de trabalhadores assalariados e de trabalhadores por conta própria (incluindo agricultores parcelares) no mundo inteiro.
Ninguém melhor do que este grupo encarna a classe capitalista transnacional que controla e rege a vida socioeconómica, sociopolítica e sociocultural da grande maioria dos seres humanos à escala planetária.
A força versus a opinião
Estes 7.000 indivíduos da “superclasse” constituem 0,0001 % (a milionésima parte) da população mundial. Todos juntos não chegariam para encher o Pavilhão Atlântico em Lisboa, que pode abrigar 12.500 pessoas sentadas. Esta pequeníssima minoria constitui o núcleo central do grupo de multimilionários, também ele exíguo (0,8% da população mundial), que controla 48% da riqueza mundial.
No entanto, esta minúscula oligarquia capitalista consegue comandar, em grande medida, os destinos de mais de 7.500 milhões de pessoas, não obstante a tremenda instabilidade do seu modo de produção (o modo capitalista de produção, com as suas proverbiais e recorrentes fases de expansão, recessão, depressão e recuperação); não obstante as guerras frequentes, e com armas cada vez mais mortíferas, que promove; não obstante a ameaça de holocausto nuclear que constantemente faz pesar sobre a humanidade há mais de meio século 17; não obstante a degradação ambiental que provoca em muitas partes do planeta.
Como explicar que isso seja possível apesar de estarem reunidas, pelo menos nos países capitalistas industrialmente mais desenvolvidos — na maior parte da Europa (incluindo a Federação Russa), na América do Norte (EUA e Canadá), na Ásia (Japão, Coreia do Sul, China, Taiwan), na Australásia (Austrália, Nova Zelândia) — quase todas as condições sociais objectivas (industriais, científicas, tecnológicas, culturais) para a humanidade se auto-organizar e se auto-instituir socialmente de um modo que ponha termo a todos esses flagelos?
Esta é uma pergunta fundamental que raramente ou nunca é feita, malgrado a sua importância. Não precisamos, porém, de procurar com afinco a resposta a esta pergunta crucial. Ela foi-nos dada, nas suas linhas gerais, em 1741, pelo filósofo escocês David Hume (1711-1776), embora sejam poucos os que a recordam:
Nada parece mais surpreendente aos olhos daqueles que consideram os assuntos humanos de um ponto de vista filosófico do que a facilidade com que os muitos são governados pelos poucos; e a implícita submissão com a qual os homens renunciam aos seus próprios sentimentos e às suas próprias paixões em benefício dos sentimentos e das paixões dos seus governantes. Quando investigamos os meios pelos quais este prodígio é efectuado descobrimos que, como a Força está sempre do lado dos governados, os governantes não têm nada mais senão a opinião para os apoiar. Por conseguinte, é tão-somente na opinião que se baseia o governo; e esta máxima aplica-se tanto aos governos mais despóticos e militares como aos governos mais livres e populares. O sultão do Egipto ou o imperador de Roma podem conduzir os seus inofensivos súbditos como bestas quadradas, agindo contra os seus sentimentos e as suas inclinações. Mas tanto um como o outro têm, pelo menos, de dirigir os seus mamelucos ou as suas guardas pretorianas por meio da sua opinião, como homens 18.
O economista e sociólogo Vilfredo Pareto (1848-1923), um dos mais ilustres defensores do modo capitalista de produção e das suas “elites” (entenda-se, oligarquias) governantes, prolongou a conclusão de David Hume de um modo original.
Começou por observar que as classes governantes, aquelas que ocupam o topo da pirâmide social em todas as sociedades divididas em classes socioeconómicas, se dividem, regra geral, em duas “elites” [foi Pareto que conferiu a este termo o seu sentido contemporâneo]: a “elite” dos “leões” (que governam pelo uso da força bruta, ou seja, pelo monopólio do uso das armas de guerra) e a “elite” das “raposas” (que governam pelo uso da astúcia, ou seja, pela persuasão e pela trapaça). A classe governante ideal, salientou ele, é aquela cuja composição consiste numa adequada proporção de “leões” e “raposas”. Contudo, ressalvou, são sempre as “raposas” que devem prevalecer, se a classe governante quiser perpetuar-se no poder. E explicou porquê:
A classe governante tenta (…) defender o seu poder e prevenir o perigo de uma sublevação (…) de várias maneiras (…). [A classe governante] usa a derivação [na terminologia de Pareto “derivação” significa o mesmo, grosso modo, que “propaganda” para a Igreja Católica Apostólica Romana (exemplificada pela Congregatio de Propaganda Fide, estabelecida pelo papa Gregório XV em 1622), que “opinião” para David Hume, que “ideologia” para Marx e Engels, que “propaganda” para George Plekhanov, que “agitprop” (acrónimo de “agitação e propaganda”) para Lénine, que “engenharia do consentimento” para Edward Bernays, que “aparelho ideológico de Estado” para Louis Althusser, N.E.] para manter [os oprimidos] sossegados, dizendo-lhes que “todo o poder vem de Deus”, que é um “crime” recorrer à violência, que não há razão para usar a força para obter o que, se for justo, pode ser obtido pela “razão”. O propósito principal de tais derivações é evitar que [os oprimidos] travem a luta no seu próprio terreno, o terreno da força, e levá-los para outro terreno — o campo da astúcia — onde a sua derrota é certa 19. [N.E.= nota editorial]
As observações de Hume sobre a “opinião” como instrumento de governo não tiveram de esperar por Pareto para se tornarem parte da educação das classes governantes ulteriores. Há boas razões para pensar que elas foram integralmente assimiladas, a partir da revolução industrial, pela classe capitalista e pelo seu pessoal económico e político 20, muito especialmente, pela sua actual “elite” dirigente, a chamada “superclasse.”
Um exemplo entre mil. A facilidade com que a população dos EUA aceitou a invasão do Iraque, em 2003, por tropas americanas e engoliu o seu pretexto (a mentira, cozinhada nas mais altas esferas do Estado americano, de que o regime de Sadam Hussein possuía “armas de destruição em massa” e de que tinha culpas na destruição da torres gémeas do World Trade Center em Nova Iorque) foi o resultado de um esforço concertado que envolveu o Office of Global Communications da Casa Branca, a CIA, o Departamento de Defesa dos EUA (vulgo, Pentágono) ‒ em particular através de estruturas como a Information Operations Task Force, uma unidade encarregada de moldar a percepção do público sobre o Iraque, e a Joint Combat Camera Program, uma unidade militar de cineastas e fotógrafos ‒, firmas especializadas de Relações Públicas e Propaganda, como o Rendon Group, grandes firmas de comunicação social, como a CNN, a CBS, a MSNBC, a ABC, a Fox News, e grandes jornais de referência, como o New York Times, o Washington Post e o Wall Street Journal. 21 O mesmo vale dizer, mutatis mutandis, do comportamento dos meios de comunicação social britânicos no apoio à invasão do Iraque por tropas do Reino Unido, ao lado das tropas americanas. Ver, por exemplo, o editorial da revista The Economist de 22 de Fevereiro de 2003, intitulado Why war would be justified, que começa assim : «Sadam Hussein must be disarmed. If necessary, it should be done by force [Sadam Hussein tem de ser desarmado. Se for necessário, isso deveria ser feito por meio do emprego da força].
É através do (a) automatismo das relações assimétricas de propriedade e controlo dos meios sociais de produção (e do seu prolongamento nas relações assimétricas do mercado) que reproduzem constantemente o trabalho assalariado num pólo da sociedade e o capital no outro pólo, 22 e (b) desta sofisticada capacidade para fabricar a opinião que mais lhe convém que seja acreditada e para fazer dela o “senso comum”/“lugar comum”, que a classe capitalista consegue dominar e dirigir o resto da humanidade no plano económico e no plano político, respectivamente, dominando e dirigindo, muito em particular, a classe que ela própria criou para se expandir pelo planeta inteiro e que é a fonte principal dos seus rendimentos e do seu património: a classe dos trabalhadores assalariados, a classe dos proletários modernos. 23.
O elemento fundamental da opinião dominante são as ideias de que (i) não existe, nem poderia existir, um modo de produção alternativo e superior em produtividade ao modo capitalista de produção 24 e de que (ii) não existe, nem poderia existir, um sistema político alternativo e superior em legitimidade à oligarquia electiva (mais conhecida por “governo representativo”), sobretudo quando toma a forma de uma plutocracia ou de uma oligarquia liberal — comummente designada pelo oximoro “democracia representativa” ou pelo oximoro “democracia eleitoral”, ou ainda pelas expressões imerecidas e enganadoras “democracia” e “democracia liberal”.
A mais recente e também, em minha opinião, a melhor (entenda-se: a mais abrangente, melhor documentada e intelectualmente mais honesta) defesa simultânea destas duas teses é o livro de Branko Milanovic, Capitalism, Alone ‒ The Future of the System That Rules the World (2019). A sua mensagem central é, resumidamente, a seguinte: o capitalismo hipercomercializado e globalizado que domina hoje o mundo inteiro é um sistema intrinsecamente produtor de monstruosas desigualdades de rendimento, património, riqueza, educação, saúde e oportunidades de desenvolvimento entre pessoas, grupos, classes socioeconómicas e países. É também, e pelas mesmas razões, um sistema «intrinsecamente amoral», que incentiva as pessoas (todas as pessoas) a serem corruptas, gananciosas e hipócritas, desde que saibam manter uma fachada de cidadãos impolutos, respeitadores das leis em vigor. Todavia, não existem alternativas a este sistema. As alternativas que o mundo tentou no passado revelaram-se piores; algumas delas muito piores. Por isso, consideremo-nos afortunados por continuarmos a acatar as normas deste sistema e consideremo-nos felizes por vivermos sob sua batuta ! 25.
Ambas as ideias, (i) e (ii), que Milanovic defende com invulgar candura, são falsas, como os artigos publicados neste blogue se encarregarão de demonstrar.
O movimento cooperativo e a auto-emancipação dos trabalhadores
O que falta às classes trabalhadoras assalariadas dos diferentes países não é pois, seguramente, a força dos números, que está esmagadoramente do seu lado (cf. nota 23). Também não é a capacidade de protesto e de luta contra as diferentes formas de exploração e de opressão das classes capitalistas tradicionais e da sua mais recente cúpula transnacional americana, europeia e asiática. Durante os dois séculos e meio que o moderno modo capitalista de produção leva de vida, as classes proletárias já travaram todo o tipo de formas de luta, algumas das quais são inéditas na história das lutas emancipadoras da humanidade — como, por exemplo, os boicotes, as autoriduziones [autorreduções] (entenda-se: o movimento organizado pelo qual os consumidores, na área de consumo, e os trabalhadores, na área da produção, decidem reduzir, a um nível colectivamente determinado, o preço de transportes públicos, os arrendamentos de habitação, o preço das tarifas da electricidade; ou, na fábrica, a taxa de produtividade 26), as greves, as greves de zelo, as greves “selvagens” (entenda-se: decididas sem aviso prévio e conduzidas fora do controlo das organizações sindicais e dos mecanismos de negociação legalmente constituídos e assegurados por uma burocracia sindical), as greves com ocupação do local de trabalho, e, nos casos extremos, como, por exemplo, quando os patrões abrem falência ou se põem em fuga para não pagar salários, as lutas que levam os trabalhadores a tomar conta das empresas e a manterem-nas em actividade, ao mesmo tempo que reestruturam os sistemas de laboração em conformidade com os princípios do cooperativismo: autonomia, igualdade, entreajuda, solidariedade e democracia.
Mais ainda: no decurso desses dois séculos e meio, o proletariado moderno foi também capaz de descobrir o caminho para a sua auto-emancipação económica sem precisar de nenhuma autoproclamada “elite” (mutato nomine, “vanguarda”) partidária, de nenhuma aristocracia “revolucionária” 27 para o ter conseguido fazer. Recordemos o que Karl Marx disse a este respeito:
Ao cabo de trinta anos de luta, travada com a mais admirável perseverança, as classes trabalhadoras inglesas, aproveitando um momento de divisão entre os senhores da terra e os senhores do dinheiro, conseguiram conquistar a lei das Dez Horas. [a Ten Hours’ Bill, a lei aprovada em 1847 pelo parlamento britânico que fixou em 10 horas o limite da jornada de trabalho para as mulheres e as crianças dos 13 aos 18 anos, N.E.] Os imensos benefícios físicos, morais e intelectuais que daí advieram para os trabalhadores das fábricas, cuja crónica se encontra nos relatórios semestrais dos inspectores das fábricas, são agora reconhecidos em toda a parte. A maioria dos governos continentais teve de aceitar esta Lei das Fábricas Inglesas de forma mais ou menos modificada, e o próprio Parlamento Inglês é obrigado todos os anos a alargar a sua esfera de acção. […] Esta luta sobre a restrição legal das horas de trabalho travou-se com tanto mais ferocidade, quanto, para além da avareza assustada, dizia respeito, na verdade, à grande competição entre a regra cega das leis da oferta e da procura que formam a economia política da classe média, e a produção social controlada pela previsão social, que forma a economia política da classe trabalhadora. Daí que a Lei das Dez Horas não tenha sido apenas um grande êxito prático; foi a vitória de um princípio; foi a primeira vez que, em plena luz do dia, a economia política da classe média [entender: a classe dos capitalistas e dos gestores das firmas capitalistas, privadas e públicas, enquanto classe distinta da classe dos grandes proprietários fundiários de origem pré-capitalista, senhorial, N.E.] sucumbiu à economia política da classe trabalhadora.
Mas temos de referir ainda uma vitória ainda maior [do que a Lei das 10 horas] da economia política do trabalho sobre a economia política da propriedade [privada dos meios sociais de produção]. Falamos do movimento cooperativo, especialmente das fábricas cooperativas levantadas do chão pelo esforço de algumas “mãos” arrojadas, sem qualquer auxílio. O valor destas grandes experimentações sociais [Inglês, “social experiments”] dispensa sobreadjectivação. Por obras, em vez de argumentos, elas mostraram que a produção em larga escala e de acordo com as exigências da ciência moderna, pode ser prosseguida sem uma classe de patrões empregando uma classe de “braços”; mostraram que, para darem fruto, os meios de trabalho não precisam de ser monopolizados como instrumento de domínio sobre, e de extorsão contra, o próprio trabalhador e que, tal como o trabalho escravo e o trabalho servil, o trabalho assalariado não é senão uma forma transitória e inferior destinada a desaparecer perante o trabalho associado que desenvolve a sua labuta com mãos solícitas, mente alerta e coração alegre. Na Inglaterra, as sementes do sistema cooperativo foram semeadas por Robert Owen. As experimentações realizadas no continente europeu foram, de facto, o resultado prático de teorias que não foram inventadas, mas proclamadas com voz forte, em 1848.
Ao mesmo tempo, a experiência do período que vai de 1848 a 1864 provou, para lá de qualquer dúvida, que, embora excelente quanto ao seu princípio e por mais útil que seja na prática, o trabalho cooperativo, se for mantido dentro do estreito círculo privado dos esforços esporádicos dos trabalhadores, nunca conseguirá deter o crescimento em progressão geométrica dos monopólios, libertar as massas, nem sequer aligeirar as suas misérias de modo perceptível. É talvez por esta mesma razão que fidalgos aparentemente bem intencionados, palavrosos filantropos da classe média e até mesmo economistas políticos profissionais se converteram todos, ao mesmo tempo, em enjoativos bajuladores do mesmo sistema de trabalho cooperativo que tentaram eliminar quando ainda estava em embrião, ridicularizando-o como uma utopia de sonhadores, ou estigmatizando-o como um sacrilégio de socialistas. Para salvar as massas laboriosas, o sistema cooperativo deve ser desenvolvido em dimensões nacionais e deve, por conseguinte, ser promovido por meios nacionais (Karl Marx, Alocução Inaugural da Associação Internacional dos Trabalhadores, Outubro de 1864 [minha tradução]).[O destaque de certas passagens por meio de traço grosso foi acrescentado por mim, J.C.S.] 28.
Não devemos perder de vista que Marx escreveu estas palavras mais de 120 anos antes dos espaços nacionais da economia capitalista terem sido ultrapassados pelas firmas transnacionais. Nesse sentido, as suas palavras devem ser entendidas, nos dias de hoje, assim: «Para salvar as massas laboriosas, o sistema cooperativo deve ser desenvolvido em dimensões nacionais e transnacionais e deve, por conseguinte, ser promovido por meios nacionais e transnacionais.»
Feita esta ressalva, creio que este trecho mostra bem o modo como Karl Marx (1818-1883) se esforçou por generalizar, com a máxima clareza e brevidade, o modo como a classe trabalhadora do seu tempo mostrou ser capaz de superar, por obras mais do que por argumentos, a máxima de David Hume relativamente à relação entre governantes e governados (a saber: “Embora sejam poucos, os governantes vencerão sempre, porque são mais astutos do que os governados”). Noutro ponto da mesma alocução, Marx acrescenta:
Um elemento de êxito eles [os trabalhadores] possuem — números. Mas os números só pesam na balança se estiverem unidos por combinação [entenda-se: por união organizada de esforços e projectos] e se forem conduzidos pelo conhecimento.
A mensagem, como se constata, é muito semelhante àquela que Hume procurou transmitir, noutro contexto, com outro propósito e por outras palavras, no trecho supracitado.
É forçoso reconhecer, porém, que esta mensagem foi quase completamente obliterada. A experiência riquíssima do período que vai de 1876 (data da dissolução da Associação Internacional dos Trabalhadores de boa memória), até aos nossos dias (2020), provou, para lá de qualquer dúvida razoável, mas quase sempre pela negativa, que os “números” que atestam a força dos trabalhadores assalariados raramente ou nunca estiveram unidos por uma combinação conduzida pelo conhecimento do que é necessário fazer para desenvolver o sistema cooperativo em dimensões nacionais e internacionais, por meios nacionais e internacionais.
Ora, sem esse conhecimento, sem a enunciação, a mais ampla discussão e a assimilação dos factos e argumentos em que ele assenta, não por uma minoria esclarecida (muito menos por uma minoria pretensamente esclarecida que se arvore em vanguarda dirigente, sinal claro de que aspira vir a ocupar o lugar hoje ocupado pelos gestores da classe capitalista) mas por centenas de milhões de trabalhadores assalariados, a auto-emancipação socioeconómica e sociopolítica dos trabalhadores assalariados através da instituição do «sistema republicano e beneficente da associação de produtores livres e iguais» 29 — ou o socialismo/comunismo, se também lhe quisermos chamar assim, lavando a cara desses termos gémeos tão encardidos pelas incontáveis malfeitorias que foram feitas em seu nome por demagogos astutos e cruéis — não é possível, porque só poderá ter êxito se for obra dos próprios trabalhadores.
Posso agora formular, sem correr o risco de ser mal compreendido, os dois problemas de que se ocupará exclusivamente este blogue. Formulá-los-ei sob a forma de perguntas (P):
P1 [1ª pergunta]) Que arquitectura institucional deve ter uma sociedade de indivíduos autónomos, livremente associados, como produtores em pé de igualdade, em empresas cooperativas e noutras formas igualitárias de organização económica — como, por exemplo, as redes Par-com-Par [P2P, em Inglês] — ciberneticamente coordenadas umas com as outras por meio de uma rede virtual de computadores e de um plano informatizado e global de produção, democraticamente discutido e aprovado por sufrágio universal?
Por outras palavras, que alterações temos de fazer na civilização actual para podermos viver não só numa sociedade tecnologicamente avançada, mas também numa sociedade integralmente democrática, sem produção de mercadorias nem trabalho assalariado, sem classes socioeconómicas e sem Estado, bem entrosada com o planeta Terra através de um compromisso irrenunciável com o progresso incessante do conhecimento explicativo (filosófico, científico e tecnológico), especialmente no âmbito da saúde, da segurança alimentar, da energia e do clima ? 30
P2 [2ª pergunta]) Que medidas e acções concretas podemos nós pôr em prática nos próximos cinco, dez, quinze, vinte anos para auto-instituirmos (se nos quisermos assumir como cidadãos-constituintes) essa melhor alternativa à sociedade capitalista que nos come as papas na cabeça?
Quando digo “nós” refiro-me em especial aos trabalhadores assalariados e aos jovens estudantes que se preparam para sê-lo, enquanto trabalhadores em formação, visto que somos simultaneamente hoi aporoi (“os que têm poucos recursos económicos”) e hoi polloi (“os mais numerosos”) como dizia Aristóteles no seu tratado sobre Política, referindo-se aos cidadãos (artesãos, jornaleiros, comerciantes e agricultores parcelares) que exerciam o poder na democracia ateniense dos séculos V e IV a.C.
A segunda pergunta é muito mais difícil e melindrosa do que a primeira. Mas sem uma resposta cabal à primeira, não é possível dar uma resposta com pés e cabeça à segunda. Não podemos pôr de lado um estudo e uma discussão aprofundada sobre o modo como uma sociedade pós-capitalista integralmente democrática deve ser organizada. No tempo de Marx (quando a classe dos trabalhadores assalariados por conta do capital industrial era ainda minoritária no mundo inteiro, incluindo a América do Norte e a própria Europa Ocidental, exceptuando a Inglaterra), isso era permissível, hoje não. No tempo de Marx não existiam os pré-requisitos tecnológicos do socialismo/comunismo. Hoje existem (um ponto que desenvolverei noutra oportunidade) 31. Por outro lado, não podemos fazer de conta que o século XX não existiu, ou que não nos ensinou nada, especialmente sobre o socialismo/comunismo e, sobretudo, sobre o pseudo-socialismo/pseudocomunismo — o sistema que George Orwell apelidou, com muita propriedade, de colectivismo oligárquico.
Devemos, pelo contrário, recuperar, passar a pente fino e desenvolver todos os ensinamentos que o século XX nos legou, incluindo
(a) as ideias de planificação em espécie que Otto Neurath desenvolveu a partir da experiência da economia de guerra na Alemanha, durante a 1ª guerra mundial, embora libertas da fantasia que se pode planificar a produção e a distribuição sem uma unidade de conta;
(b) as propostas teóricas que Jan Appel e o GIC desenvolveram, em 1930-1935, para organizar a produção e a distribuição de bens e serviços numa sociedade pós-capitalista, e que constituiram a primeira tentativa por parte do movimento proletário da Europa ocidental para abordar de forma sistemática o problema da construção do socialismo/comunismo como sinónimo de «associação de produtores livres e iguais» (Marx);32
(c) os avanços na economia política do socialismo que conseguiram medrar esporadicamente, por períodos muito curtos e à contra-corrente na URSS estalinista e neo-estalinista, antes do naufrágio da sua experiência de planificação não-democrática, inerente ao colectivismo oligárquico.
No que respeita a (c), é o caso, por exemplo, dos inquéritos do emprego diário do tempo de Stanislav Strumilin; do método dos balanços materiais usados na preparação dos planos quinquenais e sistematizado nas matrizes de insumo-produto de Wassily Leontief; do método de programação linear de Leonid Kantorovich; do “Sistema Automatizado de Gestão Económica” de Anatoly Ivanovich Kitov; do “Sistema Nacional Automatizado de Computação e Processamento da Informação” (conhecido em Russo pelo acrónimo OGAS) de Victor Mikhailovich Glushkov; da “economia cibernética” de Nikolay Ivanovich Veduta, baseada num modelo dinâmico de equilíbrio insumo-produto pelo método iteractivo das aproximações sucessivas que servem de base à coordenação dos cálculos informatizados de planificação, concebidos, todos eles, como ferramentas de gestão planificada, desconcentrada e ciberneticamente informatizada do sistema económico, mas que nunca chegaram a ser postos em prática dada a incompreensão e a oposição da Nomenklatura (o nome russo da oligarquia tecnoburocrática dirigente), alimentadas também por erros estratégicos de alguns dos seus conceptores. 33
É o caso também, muito longe da URSS, do projecto de gestão económica ciberneticamente planificada denominado CyberSyn (ou Synco em Espanhol), delineado pelo ciberneticista britânico Stafford Beer para o sector público da economia do Chile (260 empresas à época), a pedido do governo de Salvador Allende, antes de este ter sido derrubado pelo golpe de Estado militar do general Augusto Pinochet, em 11 de Setembro de 1973.34
Entender-se-á concretamente o significado das duas perguntas supramencionadas lendo os artigos deste blogue — os que fazem parte do actual acervo e também, espero, os que vieram a ser publicados ulteriormente. Os seus autores (que autorizaram a divulgação dos seus artigos em Sítio com Vista) têm nacionalidades diferentes, falam idiomas diferentes, têm experiências de vida diversas e não estão todos de acordo, em todos os aspectos, sobre a resposta a dar a estas perguntas. Há entre eles diferenças notórias. Mas todos convergem na necessidade urgente de lhes dar uma resposta tão robusta e consistente quanto possível, submetendo-a ao escrutínio e ao debate públicos.
Lisboa, 25 de Abril de 2019
(este texto foi enriquecido com mais 3 fotos e uma gravura em 14 de Janeiro de 2020, com mais duas notas em 24 de Janeiro e 13 de Maio de 2020, um aditamento a uma nota em 24 de Dezembro de 2020, uma nota em 13 de Outubro de 2021 e um P.S. à nota 2 em 16 de Dezembro de 2022).
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[*] José Catarino Soares – o criador, dono e administrador deste mesmo blogue – é um linguista português que vive em Lisboa, Portugal. É doutorado em linguística pela Université Sorbonne Nouvelle, Paris. Ensinou e investigou durante quase três décadas no ensino superior politécnico, em Portugal, onde era professor coordenador. Antes de se dedicar à linguística, a sua área principal e predilecta de investigação, ensinou sociologia, área onde também é formado. Hoje é um investigador independente.
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- É interessante notar que este modo de produção não teve, durante quase um século, um nome próprio que o identificasse com clareza. O responsável por esse acto de baptismo — concomitante da análise minuciosa e pioneira a que procedeu desse modo de produção na sua obra O Capital — foi Karl Marx. Quanto ao acto de baptismo propriamente dito, teve lugar no prefácio à primeira edição (1867), em alemão, do primeiro volume de O Capital. Aí, Marx escreveu: «Neste trabalho, proponho-me examinar o modo capitalista de produção e as condições de produção e de troca que correspondem a esse modo. Até ao presente momento, o seu terreno clássico tem sido a Inglaterra. Essa é a razão pela qual a Inglaterra é usada como a ilustração principal no desenvolvimento da minhas ideias téoricas.» (minha tradução, a partir da tradução inglesa (1887) de Das Kapital feita por Samuel Moore e Edward Aveling e editada por Friedrich Engels). Já anteriormente, o socialista francês Louis Blanc tinha usado a palavra “capitalismo” num sentido algo semelhante. No seu livro L’Organisation du Travail (1850), nona edição revista e aumentada, Louis Blanc escreveu : « Este sofisma [de Frédéric Bastiat sobre a legitimidade do juro, N.E.] consiste em confundir perpetuamente a utilidade do capital com o que eu chamarei capitalismo, quer dizer a apropriação do capital por uns, com exclusão dos outros » (p.181). [N.E. = nota editorial]
- Sabemos isso graças a um estudo recente de Stefania Vitali, James B. Glattfelder e Steffano Battiston, “The Network of Global Corporate Control”, PLoS ONE, Volume 6, nº 10 (October 21, 2011), https://doi.org/10.1371/journal.pone.0025995. Os autores partem dos 37 milhões de firmas e investidores que constam da base de dados Orbis 2007, publicada pela OCDE, assim como de uma lista de 43.060 firmas transnacionais (que eu apelidarei, para abreviar, de “FTN”) extraída pelos autores dessa base de dados. Com base nessas informações, o seu estudo concentra-se na construção e análise do gráfico de relações de controlo entre firmas (que firmas detêm as acções de outras) tendo em conta as receitas de cada firma, de modo a detectar a estrutura do poder económico. O poder destas firmas transnacionais de determinarem interna, autonomamente e à escala mundial os processos de trabalho, os fluxos de matérias primas e matérias auxiliares, as transacções financeiras e a divisão/localização nacional das diferentes fases da produção constitui a forma actual e mais potente do alto comando da indústria pelo capital, que Marx apelidou de despotismo do capital ou autocracia do capital (Karl Marx, Le Capital. Livre Premier. ouvrage publié sous la responsabilité de Jean-Pierre Lefevre. Quadrige/Presses Universitaires de France, 1993, pp.373, 452, 718, 724). «O código [de disciplina] de fábrica, no qual o capital formula o poder autocrático que dispõe sobre os seus operários a seu bel-prazer, como um legislador privado, sem a divisão de poderes que a burguesia tanto aprecia e sem o sistema representativo que ela acarinha ainda mais noutros âmbitos, não é senão a caricatura capitalística da regulação social do processo de trabalho que se tornou necessária com a cooperação em grande escala e a utilização em comum de meios de trabalho, nomeadamente maquinaria. O chicote do traficante de escravos foi substituído pelo livro das punições do vigilante. Todas as punições se resumem, bem entendido, a multas e retenções sobre o salário, e o talento legislativo destes Licurgos de fábrica arranja maneira de fazer com que a violação das leis que eles próprios estabeleceram lhes traga mais lucro do que o respeito por elas» (p.476/276). Noutras passagens de O Capital, Marx acrescenta: «Não é por ser um chefe de empresa industrial que um homem é capitalista, ele torna-se um chefe de empresa industrial porque é capitalista [ou porque esse poder lhe foi delegado por um ou mais capitalistas, N.E.]. O alto comando na indústria torna-se um atributo do capital, tal como, na época feudal, o alto comando nos assuntos da guerra e da justiça era um atributo da propriedade fundiária» (p.374/232). E ainda: «Este poder dos reis asiáticos ou egípcios, ou dos teocratas etruscos, etc. [de fazerem trabalhar de modo organizado milhares de trabalhadores às suas ordens e de conseguirem, assim, realizar obras colossais, N.E.] passou, na sociedade moderna, para as mãos do capitalista, quer ele se apresente como um capitalista isolado ou como um capitalista colectivo, nas firmas por acções» (p.376/233) [As traduções são minhas, a partir da edição francesa supramencionada de O Capital e da primeira edição inglesa, de 1887, na tradução de Samuel Moore e Edward Aveling, editada por Friedrich Engels. As páginas indicadas são as da edição francesa e da edição inglesa, respectivamente]. Referindo-se às firmas capitalistas, em particular às firmas transnacionais, o historiador João Bernardo [J.B.] crismou o “despotismo/autocracia do capital” (Karl Marx) de Estado Amplo. As firmas transnacionais (não confundir com firmas multinacionais) ‒ que não existiam no tempo de Marx, nem sequer nos anos 1970-1980 do século XX (v. Samuel J. Palmisano, “The Globally Integrated Enterprise”, Foreign Affairs, vol. 85, Number 3, 2006) ‒ teriam a capacidade de prosseguir uma estratégia própria, independente dos Estados Restritos (termo que J.B. aplica aos governos, parlamentos e instâncias judiciárias nacionais, com os concomitantes braços armados: polícias e forças militares, por oposição a Estado Amplo), tanto dos países onde estão implantadas as suas sedes centrais (ou firmas-mães) como daqueles onde se estabelecem as suas filiais. «Elas não são um agente de um ou outro governo estrangeiro, como pensam aqueles que ainda hoje raciocinam em termos estritamente nacionais. As companhias transnacionais são elas mesmas um poder, o mais importante na época actual. (…) [O] que agora se denomina neoliberalismo não é mais do que a hegemonia exercida sobre o Estado Restrito pelas companhias transnacionais, enquanto elementos determinantes do Estado Amplo» (João Bernardo, Estado. A Silenciosa Multiplicação do Poder. São Paulo: Escrituras, 1998, p.26) Por outras palavras, a amplitude da esfera de acção do “Estado Restrito” estaria limitada, o mais das vezes ‒ mesmo para os Estados mais poderosos ‒ às fronteiras nacionais/territoriais entre os países. Em contraste, muitas das acções e relações das firmas transnacionais que, perante as fronteiras do Estado restrito, seríamos levados a caracterizar como sendo externas, situam-se de facto no âmbito interno da esfera de acção do “Estado Amplo”. É o caso de investimentos, subcontratação, contratos de franquia, contratos de transferência de tecnologia, contratos de gestão, alianças estratégicas, etc. P.S. [16.12.2022] Esta teoria de J.B. foi testada, posta empiricamente à prova — uma prova muito vasta e exigente — pela segunda guerra na Ucrânia (a que começou em 24 de Fevereiro de 2022 com a invasão das tropas russas da Ucrânia). Ficou provado, por meio desse teste empírico, que os «Estados amplos» do chamado Ocidente Alargado se alinharam maioritariamente (mesmo sofrendo avultadíssimos prejuízos económicos e financeiros) com o «Estado restrito» mais poderoso (os EUA), em vez de ter sucedido o inverso, como seria de esperar se a teoria de J.B. fosse verdadeira. Considero, pois, que a teoria de J.B. foi empiricamente refutada pelo resultado deste teste. Para sobreviver, terá de ser profundamente remodelada, começando por inverter a polaridade inerente à sua terminologia: «Estado restrito» vs «Estado amplo»
- Na gíria dos correctores de bolsa, as “fichas azuis” (Ingl. “blue chips”) são as firmas (ou as acções de firmas) bem conhecidas, bem estabelecidas e bem capitalizadas, razão pela qual essas firmas e as acções que emitem são consideradas investimentos seguros. O termo “ficha azul”, empregado nesta acepção, vem do póquer, jogo em que as fichas azuis estão entre as mais valiosas.
- Este gráfico, tal como o anterior, foi extraído do artigo de Stefania Vitali, James B. Glattfelder e Steffano Battiston, “The Network of Global Corporate Control” (cf. nota 2, supra). Os nós [pequenas esferas vermelhas] do gráfico representam firmas, e dois nós determinados, A e B, são conectados por um arco que vai de A até B, se A puder controlar B por ter mais de 50% de suas ações. Os autores analisam “apenas” o gráfico de firmas controladas por uma FTN ou que controlam uma FTN. Como se verifica, são numerosos os casos de controlo recíproco entre FTNs.
- Cf. Peter Phillips, Giants: The Global Power Elite (New York: Seven Stories Press, 2018, p.37).
- Ao câmbio de hoje (10-04-2019) 1 dólar americano equivale a 0,88 euros.
- Cf. Peter Phillips, op.cit., p.49.
- Ver Facundo Alvaredo et al., The World Inequality Report 2018 (Paris: World Inequality Lab, 2017), https://wir2018.wid.world/. O artigo Rumo à Democracia Integral, publicado neste blogue, refere alguns dos números deste e doutros relatórios que ilustram a brutal desigualdade de riqueza (rendimentos e património) entre indivíduos (ricos e pobres) dentro dos países e à escala mundial.
- O conceito e a expressão são de Edward Bernays, “The engineering of Consent” (1947), Annals of the American Academy of Political and Social Science, 250 (1): 113–120.
- “Forbes’s 32nd Annual World’s Billionaires Issue” 6 de Março de 2019. https://www.forbes.com/sites/forbespr/2018/03/06/forbes-32nd-annual-worlds-billionaires-issue/?sh=1a97b1f810e0.
- Sobre as instituições transnacionais controladas pela “elite” da camada (C), ver Handbook of Transnational Governance : Institutions & Innovations, eds. Thomas Hale & David Held (Cambridge: UK e Malden, MA: Polity Press, 2011). Sobre a “elite” da camada (E), ver P.W. Singer,Corporate warriors : the Rise of the Privatized Military Industry (New Delhi: Manas Publication, 2005); Robert Young Pelton, Licensed to Kill: Hired Guns in the War on Terror (New York: Crown publishers, 2006); Jeremy Scalhill, Blackwater : The rise of the World’s Most Powerful Mercenary Army (New York: Nation Books, 2007); Steve Fainaru, Big Boy Rules:America’s Mercenaries Fighting in Irak (Boston: Da Capo Press, 2008); Shawn Engbretch, America’s Covert Warriors: Inside the Wrld of Private Military Contractors ( Dulles, Va: Potomack Books, 2011); Luke McKenna e Robert Johnson, “A Look at the World’s Most Powerful Mercenary Armies,” (Business Insider, 26 de Fevereiro de 2012 (https://www.businessinsider.com/bi-mercenary-armies-2012-2); “The Largest Company You’ve Never heard of: G4S and the London Olympics (International Business Times, 5 de Agosto de 2012, http://www.ibtimes.com/largest-company-youve-neverheard-g4s-london-olympics-739232); Christian Davenport, “Companies Can Spend Millions on Security Measures to Keep Executives Safe” (Washington Post, 6 de Junho de 2014, http://www.washingtonpost/business/economy/companies-can-spend-millions-on-security-measures-to-keep-executives-safe/2014/06/5f500350-e802-11e3-afc6-a1dd9407abcf_ story.html; John Whitehead, “Private Police: Mercenaries for The American Police State” (OpEd News, 4 de Março de 2015, http://www.opednews.com/articles/Private-Police-Mercenarie-by-John-Whitehead-Police-Abuse-of-Power_PoliceBrutality_Police-Coverup_Police-State-150304-539.html). Sobre a “elite” da camada (D), ver Edward S. Herman e Noam Chomsky, Manufacturing Consent: The Political Economy of the Mass Media (New York: Pantheon Books, 1988); Noam Chomsky, Media Control. 2nd Edition (New York: Seven Stories Press. Open Media Series, 2002); David I. Robb, Operation Holywood: How the Pentagon Shapes and Censors the Movies (New York: Prometheus Books, 2004); Ben H. Bagdikian, The New Media Monopoly (Boston: Beacon Press, 2014); Lee Artz, Global Entertainement Media: A Critical Introduction (Chichester, UK: John Wiley and Sons, 2015); Tom Secker e &Mathew Alford, “Documents Expose How Hollywood Promotes War on Behalf of the Pentagon, CIA and NSA”, Global Research, 7 May 2019, Medium 4 July 2017 (https://www.globalresearch.ca/documents-expose-how-hollywood-promotes-war-on-behalf-of-the-pentagon-cia-and-nsa/5597891); Peter Philips, op.cit., cap. 6 .
- Convém assinalar, neste particular, que a crise financeira-económica de 2008 trouxe à luz do dia uma fraqueza estrutural muito grande destas instituições, que continua por resolver até hoje: «Uma das maiores fragilidades indicadas pela crise financeira desencadeada em 2007 é a insuficiente coordenação entre o âmbito transnacional da actividade económica e a esfera em que vigoram as instituições reguladoras, limitadas às nações ou aos conglomerados de nações. Talvez a expressão mais flagrante dessa contradição seja o uso da moeda nacional norteamericana como principal moeda mundial de uma economia transnacionalizada.[…] É paradoxal que uma moeda nacional seja usada como principal reserva de uma economia transnacionalizada, e que a transnacionalização da economia não esteja coordenada com a manutenção dos espaços nacionais (João Bernardo, “Ainda acerca da crise económica. 7) uma crise de regulação”. Passa Palavra. 7 October 2010). Julgo que o termo “paradoxal” nesta citação deveria ser substituído pelo termo “sintomático” ou “instrutivo”. Só é “paradoxal” no quadro da teoria do «Estado amplo» vs «Estado restrito» do mesmo autor que foi posta à prova pela segunda guerra na Ucrânia. Ver nota 2, supra.
- Peter Phillips, op. cit., cap.6.
- Mais exactamente 389, em 2017. Cf. Peter Phillipps, op.cit., p.29.
- Ver David Rothkopf, Superclass: The Global Power Elite and the World They Are Making. (New York: Farrar, Straus and Giroux, 2009).
- “Time to Care: unpaid and underpaid care work and the global inequality crisis”. Oxfam Briefing Paper. January 2020. https://www.oxfam.org/en/press-releases/worlds-billionaires-have-more-wealth-46-billion-people
- Fundado em 1945 por cientistas da Universidade de Chicago (EUA), que tinham participado no desenvolvimento das primeiras armas atómicas durante o chamado Projecto Manhattan, o Bulletin of the Atomic Scientists criou o Relógio do Apocalipse (Doomsday Clock) dois anos mais tarde, usando a imagem do apocalipse (meia noite) e a gíria contemporânea da explosão nuclear (contagem decrescente até zero [= meia-noite]) para transmitir alertas sobre as ameaças de destruição que pesam sobre a humanidade e grande parte da biosfera da Terra. A decisão de mover (ou deixar na mesma) o ponteiro dos minutos/segundos do Relógio do Apocalipse é tomada todos os anos pelo Conselho de Ciência e Segurança do Bulletin em articulação com o seu Conselho de Patrocinadores, que inclui 13 laureados com o prémio Nobel. O Relógio do Apocalipse tornou-se um indicador universalmente reconhecido da vulnerabilidade do mundo a uma catástrofe provocada por armas nucleares. Em 23 de Janeiro de 2020 o ponteiro do Relógio do Apocalipse foi movido para os 100 segundos antes da meia-noite. Está agora mais perto do que nunca do instante fatal (cf. “It is 100 seconds to midnight. 2020 Doomsday Clock Statement”. Bulletin of the Atomic Scientists).
- “Of the First Principles of Government”, David Hume (1777), Essays — Moral, Political, and Literary. (Revised Edition. Indianapolis: Liberty Fund, 1985, 1987). Minha tradução. Em 1845-1846, Karl Marx e Friedrich Engels, na Ideologia Alemã, um livro que nunca chegaram a publicar em vida, desenvolveram o argumento de Hume de um modo mais abrangente e abstracto: «As ideias da classe governante são em todas as épocas as ideias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, simultaneamente, a força intelectual dominante. A classe que dispõe dos meios de produção, tem simultaneamente o controlo dos meios de produção mental, de forma que, por essa via, as ideias daqueles que não têm os meios de produção estão geralmente subordinados a essa classe. (…). Por conseguinte, na medida em que [os membros dessa classe] dominam como classe e determinam a extensão e o rumo de uma época, é óbvio que o fazem em todo o seu alcance. Daí que, entre outras coisas, dominem também como pensadores, como produtores de ideias, e que regulem a produção e a distribuição das ideias da sua época. Assim sendo, as suas ideias são as ideias dominantes da época» [minha tradução] (Karl Marx & Friedrich Engels, Collected Works, Vol. 5. New York: International Publishers, p. 59). Georges Orwell (1903-1950) desenvolveu o argumento de Marx e Engels num aspecto importante — o da regulação da produção e da distribuição das ideias de uma época — que se tornou evidente no século XX (embora, aparentemente, Orwell não o tivesse feito com essa intenção, pois nunca se refere nem a Marx e Engels, nem a Hume). Fê-lo no seu prefácio a Animal Farm [A Quinta dos Animais], intitulado The Freedom of the Press [A Liberdade de Imprensa], que os editores da 1ª edição de Animal Farm (1945) decidiram suprimir e que só foi descoberto e publicado postumamente, muitos anos depois. Nesse texto, Orwell identifica um dos mais poderosos aliados ‒ e também o mais discreto ‒ da classe dominante: a cobardia intelectual de muitos editores de livros e de muitos responsáveis pelos conteúdos dos orgãos de comunicação social que os leva a censurarem e autocensurarem as opiniões e os factos que desagradam aos poderes estabelecidos, assim como o servilismo de muitos escritores, jornalistas e intelectuais públicos que apoiam tácita ou explicitamente tais atitudes e comportamentos. Por sua vez, João Bernardo criticou as limitações da tese de Marx e Engels nos seguintes termos. «A tão repetida tese de Marx e Engels de que as ideias dominantes são as ideias da classe dominante é incompleta. É também errada no mecanismo unidireccional que supõe, porque as classes dominantes apropriam-se igualmente das ideias dos explorados, convertem-nas e moldam-nas, assim como o mesmo se passa em sentido contrário. A ideologia dominante é uma teia imbricada de ideias provenientes das várias classes opostas, e é este o cimento ideológico da sociedade. Quando ideias de proveniência diversa se fundem numa amálgama cujos componentes têm uma origem indestrinçável, surge o lugar-comum, que é a modalidade mais forte de enraizamento ideológico». “Post-Scriptum: contra a ecologia, lugar comum dos nossos dias.” Passa a Palavra, 06-09-2013. https://passapalavra.info/2013/09/83039/
- Vilfredo Pareto. Mind and Society [tradução inglesa do Tratatto di Sociologia Generale].Vol.4. New York: Harcourt Brace, 1935, cap.12, p. 1534.
- Incluindo tiranos como, por exemplo, António Oliveira Salazar, que sabia bem que a força e a repressão não eram suficientes para se manter no poder, como o atestam as seguintes declarações: A opinião pública é indispensável à vida de qualquer regime. Os governos por mais apoios de que disponham, não se mantêm usando a força, mas mantendo-a (…) Simplesmente essa opinião pública pode viver abandonada a si própria ou ser convenientemente dirigida (…) Os governos nunca se devem escravizar à opinião das massas, sempre inferior e muito diferente da opinião pública da Nação. Em resumo, a opinião pública é indispensável ao governo dos povos, constitui, por vezes, um grande estimulante, mas nunca se deve perder, a bem da sua própria saúde, o controlo da sua formação (7ª entrevista de Salazar a António Ferro, em António Ferro, Entrevistas a Salazar. Editora Parceria A.M. Pereira, 2003).
- Ver James Bamford, “The man who Sold the War” (Rolling Stone, Novembro de 2005), republicado por Common Dreams em 18 de Novembro de 2005 (https://www. commondreams.org/headlines05/1118-10.htm) ; Ray Eldon Hiebert, “Public Relations and Propaganda in Framing the Irak War : A Preliminary Review,” Public Relations Review, 29(3), 243-255; David L. Altheid & Jenniffer N. Grimes, “War programming The Propaganda Project and the Iraki War,” Sociological Quarterly 46, Nº4 (autumn 2005), pp.617‒43; Bill Moyers, “Buying the War”, Bill Moyers Journal, PBS, April 25, 2007; John Pilger, “War by Media and the Triumph of Propaganda”, 5 de Dezembro de 2014, http://johnpilger.com/articles/war-by-media-and-the-triumph-of-propaganda;Robin Andersen, “Bush, Blair and the lies that justified the illegal Irak war,” July 6, 2016, Fair, https://fair.org/home/bush-blair-and-the-lies-that-justified-the-illegal-iraq-war/
- Ao controlarem os meios sociais de produção de bens e serviços, os capitalistas e os gestores controlam não só o nosso tempo total de trabalho, mas também a mais-valia (a parte do trabalho que excede em valor o valor da força de trabalho que é remunerado pelo salário) e os produtos (bens e serviços) que nós, trabalhadores assalariados, produzimos — incluindo muitas das coisas de que precisamos para viver. Acresce que a única maneira legal que temos de lhes aceder é comprando-as com dinheiro que, todavia, na sua totalidade ou na sua grande parte, só conseguimos obter trabalhando para eles.
- A classe dos trabalhadores assalariados por firmas capitalista (também chamados “trabalhadores por conta de outrem” ou “proletários”) nunca foi tão numerosa como nos dias de hoje. Existiam 2.320 milhões de trabalhadores assalariados no mundo inteiro em 1990. Em 2018 eram 3.457 milhões (cf. The World Bank. https://data.worldbank.org/indicator/SL.TLF.TOTL. INData.April 2019). A população mundial, no mesmo ano, era da ordem dos 7.594 milhões de pessoas, segundo o Worldometer.
- Uma das lições mais importantes de O Capital de Marx é a explicação do modo como a exploração capitalista do trabalho assalariado se apresenta aos olhos dos trabalhadores assalariados (assim como dos próprios capitalistas e gestores) como o resultado natural e directo de relações de igualdade e liberdade entre compradores e vendedores da força de trabalho no “mercado livre”. Por exemplo, as ilusões dos trabalhadores que confundem os baixos salários e a indigência com uma maior exploração e os altos salários e o maior consumo material com uma menor exploração exprimem directamente a opacidade do mecanismo da mais-valia relativa na situação social em que se encontram. Os capitalistas e os gestores, detentores dos meios sociais de produção, não precisam, regra geral, de utilizar a força (ou sequer ameaçar com a sua utilização) nem de ludibriar os trabalhadores para que estes lhes aluguem a sua força de trabalho por um certo tempo diário ou semanal em troca de um salário. É a necessidade de garantirem o seu sustento diário e o das suas famílias, conjugada com a ausência de alternativas, que os levam muito “naturalmente” a fazê-lo, sob pena de morrerem à míngua (a menos que enveredem pelo roubo, pela extorsão ou pela mendicidade, acarretando com as pesadas consequências que essas soluções individuais comportam).
- Branko Milanovic, Capitalism, Alone ‒ The Future of the System That Rules the World. The Belknap Press of Harvard University Press. Cambridge: Massachusetts, London: England. 2019.
- Por exemplo, durante um período dos anos 1970 em Turim, Itália, o movimento de autorredução deu-se como objectivo o de não pagar mais do que 10% do salário por um arrendamento habitacional.
- Aristocracia no sentido original grego, etimológico, da palavra, que significava o exercício do poder político pelos aristoi, pelos melhores, pelos indivíduos considerados os mais capazes. Na prática, num regime político de oligarquia electiva como o que vigora no Reino Unido, nos EUA, na França, na Suécia, em Portugal, etc., os “melhores” acabam sempre por ser os mais ricos, os mais implacáveis e os mais bem informados sobre os “primeiros princípios de governo” de Hume . O melhor exemplo disso são os EUA, onde só os candidatos que sejam ricos ou ultra-ricos (milionários e multimilionários) ou apadrinhados pelos ricos e ultra-ricos conseguem fazer campanhas eleitorais e ser eleitos. Por exemplo, o presidente Donald Trump continuou a angariar donativos para a sua campanha de reeleição, mesmo depois de a ter perdido. Desde o dia da votação até 3 de Dezembro de 2020, já tinha angariado 207,5 milhões de dólares, que lhe vão servir para se candidatar de novo em 2024, se lhe der na gana (Shane Goldmacher, “Trump lost the 2020 election. He has raised $207.5 million since”. New York Times. December 3, 2020) O seu rival, Joe Biden, que acabou por ser eleito, não lhe fica muito atrás neste particular. «Joe Biden é particularmente devedor destes ultra-ricos [que enriqueceram ainda mais desde o início da pandemia] que, com donativos de 100 mil dólares ou mais, em seis meses angariaram 200 milhões de dólares para a sua campanha. Os principais centros do poder financeiro nos Estados Unidos ‒ Wall Street, Silícon Valley, Holliday, os fundos de investimento ‒ reconhecem nele um presidente que não arrisca ameaçar os seus interesses» (Jerome Karabel, “Um trumpismo sem Donald Trump”. Le Monde Diplomatique. Edição Portuguesa. Dezembro de 2020). Esta é uma das razões pelas quais o regime de aristocracia electiva dos EUA tomou, há muito tempo, a forma de uma plutocracia electiva, a forma mais antagónica da democracia.
- Karl Marx. Inaugural Address and Provisional Rules of the International Working Men’s Association, impresso como panfleto, em Outubro de 1867, em Londres. Documento disponível em https://www.marxists.org/archive/marx/works/1864/10/27.htm
- Esta expressão é de Karl Marx (cf. Karl Marx [1866], “Instruções para os Delegados do Conselho Geral Provisório [ao 1º congresso da Associação Internacional de Trabalhadores, em Genebra, N.E.]. As Diferentes Questões”. (Em Karl Marx & Friedrich Engels, Collected Works, vol.20. London: Lawrence & Wishart, 2010, p.190). A frase citada foi extraída da alínea a) da secção 5 deste texto de K. Marx, intitulada Trabalho Cooperativo. Marx utilizou-a para descrever sucintamente as características fundamentais de uma formação social regida pelo modo socialista/comunista de produção. O parágrafo completo da alínea a) de onde foi extraída a frase citada diz o seguinte: «Reconhecemos o movimento cooperativo como uma das forças transformadoras da sociedade actual, que é uma sociedade baseada em antagonismos de classes. O seu grande mérito é o de mostrar de modo prático que o actual sistema depauperante e despótico de subordinação do trabalho ao capital pode ser superado pelo sistema republicano e beneficente da associação de produtores livres e iguais.» O realce em itálico pertence ao original. Minha tradução.
- “Sem Estado” — ou seja, sem políticos profissionais, sem juízes profissionais, sem procuradores da República profissionais e sem forças profissionais de agentes armados (policiais e militares), apartados dos cidadãos comuns por múltiplos níveis de isolamento institucional. As palavras-chave, aqui, são “apartado” e “profissional” — esta última aludindo, no presente contexto, a quem é remunerado para exercer o poder político a tempo inteiro e durante uma vida inteira como se fosse um emprego como outro qualquer. Destinam-se a sublinhar, pela negativa, as razões pelas quais todas as funções públicas que são exigidas pelas necessidades gerais e comuns do «sistema republicano e beneficente da associação de produtores livres e iguais» (como, por exemplo, a segurança pública, a resolução de litígios, o julgamento de crimes) – ou que podem ser exigidas por um motivo especial de prevenção (como por exemplo, assegurar a capacidade de autodefesa da população trabalhadora contra eventuais ataques de inimigos de classe armados com armas de guerra) – devem ser, por uma questão de princípio, arrancadas das mãos de castas treinadas para serem atribuídas e distribuídas por sorteio ou por escala rotativa, e durante períodos de curta duração, a todos os cidadãos abaixo de uma certa idade (digamos, 50 anos) que gozem de boa saúde e sejam suficientemente robustos ou fisicamente capazes. Como George Orwell observou no Evening Standard, em Junho de 1941: «A espingarda pendurada na parede do apartamento ou da casa de aldeia das pessoas da classe trabalhadora é o símbolo da democracia». Orwell, era, à época, um sargento da Home Guard, uma milícia armada de alistamento voluntário que surgiu espontaneamente na Grã-Bretanha durante a Segunda Guerra Mundial. No Outono de 1940, pelo menos 740.000 dos 1.700.000 voluntários da Home Guard ainda não tinham armas de qualquer espécie. Além disso, escasseavam munições para os que já estavam armados. Neste artigo do Evening Standard e noutros que escreveu na mesma altura para outros jornais, a intenção de Orwell era salientar o que lhe parecia óbvio: que a ideia de armar todos os voluntários da Home Guard, a grande maioria dos quais eram trabalhadores assalariados, era uma boa ideia, quanto mais não fosse porque Hitler seria muito mais facilmente derrotado «se o privilégio de classe fosse erradicado para dar lugar ao socialismo». A este respeito, é pertinente fazer uma advertência. O recurso a agentes profissionais para desempenharem tarefas particulares relacionadas com as funções públicas acima mencionadas – como, por exemplo, a existência de uma pequena força de detectives profissionais encarregada da investigação de crimes graves, ou a existência de peritos/estrategas militares encarregados do treino de milícias armadas de cidadãos do tipo da Home Guard – deve ser estritamente suplementar. Isto equivale a dizer que a iniciativa e o controlo de todas as funções públicas requeridas pela associação de produtores livres e iguais, mesmo aquelas funções que pertenceriam às forças militares e policiais na sociedade capitalista actual, devem ser reservadas a conselhos compostos por cidadãos comuns escolhidos por sorteio ou (no âmbito de pequenos grupos) por lista rotativa, e limitados por mandatos de curta duração. [As citações de Orwell foram extraídas do livro de Hugh Purcell, The Last English Revolutionary: Tom Wintringham, 1898-1949 (Stroud, 2004), onde podem ser encontradas nas páginas 173-4 e 179, respectivamente].
- Fi-lo em 13 de Setembro de 2021, numa comunicação que apresentei na 2021 IIPPE Annual Conference (no IIPPE Moving Beyond Capitalism Working Group) com o título The Beneficent Principle of Post-capitalist, Industrial, Technologically Advanced and Fully Democratic Societies, without Socio-economic Classes or State (a.k.a. Socialist/Communist Societies), que se encontra publicada neste blogue. Nessa comunicação, também respondo à 1ª pergunta (P1) enunciada no corpo principal do presente artigo.
- Refiro-me ao livro Princípios Fundamentais da Produção e Distribuição Comunista (1930). Foi a primeira e agora clássica exposição (embora muito esquecida) da economia da primeira fase (ou fase inferior) do comunismo/socialismo e de facto ‒ para além dos primeiros esboços feitos por Marx na sua Crítica do Programa Gotha, em que o livro se baseia ‒ a única que alguma vez foi produzida até ao final dos anos 1970 fora da antiga União Soviética, onde Nicholai Bukharin e Evgeni Preobrajenski, tinham, em 1920, publicado o seu ABC do Comunismo (que é, na realidade, uma análise perfunctória e com muitos equívocos do tema). O primeiro esboço dos Princípios Fundamentais… foi obra de Jan Appel, um trabalhador dos estaleiros navais alemães e membro veterano do KAPD (Partido Comunista dos Trabalhadores da Alemanha, formado em 1920, como cisão do Partido Comunista da Alemanha, KPD, formado em 1918 e ligado à União Soviética). Este projecto foi subsequentemente revisto e completado em Holandês por um colectivo composto por membros do Grupo de Comunistas Internacionais (GIC) da Holanda e publicado em alemão pela Allgemeine Arbeiterunion Deutschlands (União Geral dos Trabalhadores da Alemanha) em 1930. Appel e o GIC eram comunistas conselhistas (entenda-se, defensores dos conselhos ou comissões de trabalhadores como forma mais abrangente, eficaz e genuína de auto-emancipação dos trabalhadores), tal como o eram também, na mesma época, os alemães Otto Rühle e Paul Mattick e o holandês Anton Pannekoek. Isto significa que se opuseram veementemente (entre outras coisas) à doutrina de que a construção de uma sociedade socialista/comunista equivale a pôr em prática o controlo centralizado do Estado sobre as forças produtivas, e que o planeamento económico e a socialização da produção e da distribuição são uma tarefa que incumbe a um vasto corpo de gestores especializados sob o controlo do governo (ele próprio sob o controlo de um partido presciente e todo-poderoso), e não uma tarefa central dos trabalhadores-produtores-cidadãos. No início da Primeira Guerra Mundial, esta doutrina era a herança comum das duas alas rivais da social-democracia, o centro e a esquerda, respectivamente, epitomizadas pela facção pacifista do Partido Social-Democrata Alemão (SPD), que se opôs à 1ª guerra mundial e deixou o SPD em 1917 para o efémero Partido Social-Democrata Independente da Alemanha (USPD), e pela facção derrotista do Partido Social-Democrata Russo (também conhecido como Partido Bolchevique), que se opôs à 1ª guerra mundial e tomou o poder em Outubro de 1917. Pode descobrir-se a flagrante semelhança das suas opiniões sobre a construção do socialismo/comunismo lendo os seus principais teóricos, tais como, por exemplo, Eduard Bernstein, Karl Kautsky, Rudolf Hilferding, por um lado, e Vladimir Lenin, Nikolai Bukharin, Ievguéni Preobajensky, por outro.
- É o caso, por exemplo, do sistema OGAS de Glushkov, um exemplo típico do que acontece quando se põe à carroça à frente dos bois. Ver, a este propósito, o interessante testemunho de Elena Veduta (filha de Nicolay Veduta) sobre as grandes limitações de Victor Glushkov como economista, apesar de ser um grande matemático e inventor (entrevista a Elena Veduta por Andrei Fefelov, em https://zavtra.ru/blogs/rationalization).
- A história dos projectos cibernéticos de gestão informaticamente planificada da economia da URSS de Anatoly I. Kitov (em 1959) e de Viktor Gluschkov (em 1962), que nunca chegaram à fase de execução, foi bem contada por Slava Gerovich no seu livro From Newspeak to Cyberspeak. A History of Soviet Cybernetics (Cambridge, MA: The MIT Press 2002), e por Benjamin Peters no seu livro How Not to Network a Nation: The Uneasy History of the Soviet Internet (Cambridge, Massachusetts: The MIT Press, 2016). Destes mesmos autores, vale também a pena ler os artigos “InterNyet: why the Soviet Union did not build a nationwide computer network”, de Slava Gerovitch (History and Technology. Vol. 24, No. 4 [Dec 2008], pp. 335-350). e “Why the Soviet Internet Failed”, de Benjamin Peters (MIT 6 Conference, April 29, 2009). A história do projecto CyberSyn de Stafford Beer foi bem contada pelo próprio em Platform for Change (Londres: Wiley, 1975), assim como por Eden Medina no seu artigo “The Cybersyn Revolution: Five lessons from a socialist computing project in Salvador Allende’s Chile” (Jacobin magazine, 27-04-2015) e, com muito mais pormenor, no seu livro Cybernetic Revolutionaries: Technology and Politics in Allende’s Chile (Cambridge: Massachusetts. The MIT Press, 2011. Noutro lugar deste blogue, os leitores podem encontrar cinco artigos sobre este tema, de Paul Cockshott & Allin Cottrell, Raúl Espejo, Katharina Loeber, Jeremy Gross e José Catarino Soares, respectivamente)